Algumas reflexões da professora Dra. Iná Camargo Costa, na ocasião da pré-estreia, ocorrida dia 14 de julho de 2011, do espetáculo do Coletivo Negro: “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois…”.

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Quando o Jé me pediu pra vir aqui, ele queria que eu desse uma de professora, coisa que eu não sou mais. Eu falei que eu não ia falar do Abdias e do Teatro Experimental do Negro mas só comentar o que vocês apresentassem. E acho que vocês já falaram dele, não sei com que grau de consciência. Aquela entrada do Jefferson Matias é uma referência a ele, quando disse que se trata de pegar a tecnologia dos brancos e fazer reverter a nosso favor. Mas ao mesmo tempo é uma colocação irônica, porque o enunciador da questão acredita em progresso, mas a cena mostra que é uma crença irônica, porque também mostra progresso como um trator vindo pra cima de nós. Em todo caso, aqui tem uma reflexão a fazer sobre o Abdias.
Quando o Abdias propôs o Teatro Experimental do Negro, ele de fato achava que era o caso de usar essa instituição branca falida, o teatro burguês convencional, para examinar a problemática do negro no Brasil. E sua trajetória enfrentou muitos paradoxos.
Esses paradoxos precisam ser examinados, porém no seu direito. Para vocês terem ideia, uma das primeiras pessoas perseguidas pela ditadura instalada no Brasil em 64, foi o Abdias do Nascimento. Então vejam: a nossa sociedade tem um nível insuportável, até hoje (imagine na década de 40!), de racismo e de ódio a tudo o que coloque a simples presença do negro em cena. Qualquer que seja ela. É uma coisa tão aterrorizante porque a nossa classe dominante sabe os crimes que cometeu desde o início do tráfico e não quer pagar essa conta, muito menos receber a fatura. Não vai fazer isso por bem!
A tentativa do Abdias de fazer um teatro convencional em palco italiano, com peça escrita por Nelson Rodrigues (ele mesmo um racista), por exemplo, é um dos pontos problemáticos da História.
Mas o simples fato dele ter tentado organizar os negros em elenco teatral, com todas as implicações sociais e políticas que isso tinha na época (e continua tendo), foi o suficiente para colocar o nosso Abdias do Nascimento na lista negra dos primeiros a serem perseguidos pela ditadura. O outro lado dessa questão está examinado no trabalho de vocês. Não se trata de encenar o Anjo Negro, mas talvez a peça da qual o Anjo Negro provém mereça uma reflexão, um estudo. É uma peça do Eugene O’Neill, que se chama Todos os Filhos de Deus têm Asas. Esta peça sim, examina as contradições de uma sociedade racista como a americana de um ponto de vista crítico à sociedade capitalista que se construiu pela exploração do trabalho dos negros escravizados. E isso não tem na peça de Nelson Rodrigues, porque ele normalmente estraga o material com que trabalha.
O’Neill faz um estudo das contradições entre brancos e negros nos Estados Unidos de um ponto de vista anti-racista e expõe a conta que se apresenta para o branco também. Porque O’Neill era socialista.
O trabalho de vocês tem um cuidado especial com as vozes, no sentido de polifonia. São vozes que expõem diferentes aspectos da experiência de negros que viveram ao longo do século XX. São todas experiências do século XX especificamente, embora tenha referência ao Zumbi, que é de luta e resistência. Este trabalho, já pela forma, rejeita aquela tradição à qual o Abdias queria se integrar, aquela tradição européia, ocidental, branca, que rejeitou o TEN (Teatro Experimental do Negro), que não conseguiu sobreviver por muito tempo. Acho que já em 64 ele praticamente já não existia mais. Ele teve pouco tempo de atuação.
Ao escolher esse formato de roda e o formato dos depoimentos, as diferentes vozes, com um Griô que coordena e produz essa costura de vozes, acho que vocês já deram um grande salto na busca de respostas aos desafios que estão postos para negros que querem fazer teatro.
Vocês já responderam à primeira pergunta da maneira mais acertada: “o teatro que nós vamos fazer se chama teatro, sem dúvida mas, para começo de conversa, nós queremos a roda”.
No texto do programa vocês dizem também que desenvolveram a questão da não-hierarquia. “Não queremos hierarquia”, está dito. E cumpriram rigorosamente a promessa: não estabeleceram hierarquia na cena, nem entre cena e interlocutores. Acho que isso é um acerto. Gol de placa, mesmo.
Um ponto interessante, para mim, é que a matéria que vocês colocam em cena está presente nos trabalhos que eu tenho visto nos últimos 5 ou 8 anos. E tem um recorte racial, mas ele é, antes de mais nada, social. Para mim, isso é um avanço.
A organização do material mostra a crítica pesada que precisa ser feita, não apenas às misérias que foram feitas pela sociedade “branca” desde a época dos navios tumbeiros, mas às misérias que continuam sendo feitas, pois elas têm que acabar.
Na história da sambista que adere à perspectiva da ascensão social via relações inter-raciais e, depois que “chega lá”, descobre que a sua comunidade foi destruída, está cifrada uma importante chave crítica do trabalho como um todo. Além do desastre pessoal isso implicou para ela, o seu caso leva a uma série de perguntas que estão enunciadas. O núcleo temático aqui é a ideia de progresso (e ascensão social), por isso eu destaquei o personagem Bêbado, que começa falando na hipótese de se aproveitar do progresso. Para além da caracterização do bêbado, que já diz muito, a peça acaba mostrando que, do ponto de vista negro, até agora progresso só significou crime.
Tirar conclusões a partir deste ponto a que chegou a peça, é tarefa que cabe a nós que assistimos a esses depoimentos.
Não vou tratar de questões técnicas, que sobre elas vocês próprios podem falar melhor do que eu. Achei tudo muito legal.
E não sei se vocês sabem, mas eu sou da fé de Xangô, e achei o máximo a pipa ter os machados, que representam a justiça deste orixá. Essas imagens – pipa (que sobe) com oxés – compõem uma idéia dá o que pensar (e pela qual vale a pena lutar).