Coletivo Negro enriquece a cena cultural brasileira por Salloma Sallomão

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Coletivo Negro- O silêncio de depois.

 

Para assistir a peça “Movimento numero1: O silêncio de depois” produzida pelo Coletivo Negro, no Auditório do SESI, eu e minha família enfrentamos uma saga, mas chegamos na ponta sudeste da cidade. A Vila das Merces, na geografia de São Paulo, fica entre as vias Anchieta e Imigrantes. Tenho me dado a esse luxo, sorver teatro, música, dança e cinema a preços baixos ou gratuitos no centro ou nos arredores da cidade e ianda vou com todas as mulheres. Vejam que nem tudo aqui é anomia, caos ou desgoverno.

 

No meio do caminho pra lá, ja perto da Casa de Cultura Chico Science tristemente semi-abandonada, parelhei o carro ao lado de outro estacionado em uma praça, queria pedir informação. O motorista se assustou, tive medo, um casal jovem e negro namorava. Caso fosse um policial neurótico sem raça-cor e coldre cheio, poderia ter sido facilmente alvejado por disparos. A “corporação”, para proteger o seu, faria o resto do serviço: montagem de cena de confronto com pcc, armas nos corpos, testemunhas oculares seduzidas pelo medo e uma matéria tosca e incriminadora  veiculada na baixa imprensa servil. “Sim ele tinha passagem”. Seriamos números do SEADE. Quem se importaria?

 

Calma!!!!! Esse não é um pequeno artigo sobre o viver negro em São Paulo durante a guerra entre as milícias e as gangues. É apenas um breve relato sobre um fragmento da Cena Cultural Negra em São Paulo. Quero dizer que, meu texto pode ser lido como se nada tivesse a ver com racismo violência e outras coisas desagradáveis ao público consumidor do entretenimento.

 

O COLETIVO NEGRO,  é um grupo de teatro composto por talentosos jovens negros (parece redundante, mas há teatro negro sem negros) cujo tempo de existência trajetoria mais detalhada desconheço. Formado por Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jefferson Matias, Jé Oliveira, Raphael Garcia e Thaís Dias.

“A peça do Coletivo Negro: “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois…”, foi a materialização cênica do projeto de pesquisa cênico-poético-racial intitulado: “Quilombos Urbanos”, investigação essa que foi contemplada pelo governo do Estado de São Paulo, por meio do PROAC (Programa de Ação Cultural) em 2010 e teve em sua configuração a visita e troca de conhecimentos entre o Coletivo Negro e o quilombo Ivaporunduva.”http://coletivonegro.blogspot.com.br/p/o-silencio-de-depois.

Um pequeno, convencional e confortável Teatro de bairro, como eram antigamente o Paulo Eiró e Martins Pena. Ou ao menos foi assim que os vi, ao fim do governo Erundina. O ambiente bacana, sem tensão, muita gente igualmente amável, pouco público. O formato arena foi criado apenas com disposição de duas fileiras de bancadas para o público se sentar bem próximo, encima  do palco. Cenário, luz e figurino módicos e atuação monstro, texto idem. Ficamos bem perto dos atores, praticamente em contato físico com eles, creio que não por acaso.

O diretor e o escritor do texto estavam em cena, mas Jê Oliveira apenas operava o computador que emitia os sons gravados, ruídos do trem. Considerando o frescor dos anos, mano!!!!! O Jê Oliveira escreve bem pra caramba (me disseram que o texto é dele!!!, mas no material de divulgação não se faz menção). Alguns grupos tem a estratégia de diluir o protagonismo, talvez para reforçar oespírito associativo e não fomentar egos facilmente infláveis.

“Em  2007, após a montagem do experimento cênico  ‘Um longo caminho que vai de Zero à Ene’, de Timochenko Wehbi, dentro do curso de direção da Escola Livre de Teatro de Santo André. Jé Oliveira, diretor da experimentação, começa a fomentar junto com os então artistas-aprendizes. A possibilidade de aprofundar a pesquisa que tinham realizado para aquele trabalho, cujo pano de fundo era a invisibilidade social.” Idem blog Coletivo Negro.

Essa linguagem, dramaturgia, pra mim é um mistério, por isso meu fascínio, não sei como orquestrar vozes, corpos, textos, luz, objetos, tudo para veicular algo coerente. O que mais me encanta nessa cena é perceber que se trata é uma juventude negra muito melhor que a minha. Melhor tecnicamente, melhor artisticamente, melhor politicamente, embora alguns dilemas e cacoetes da negritude das décadas passadas se repitam, insistentemente.

Então vamos lá: O texto nem sempre desliza, mas não confunde nem cai, se sustenta, segue e vai e no fim emociona mesmo. Difícil articular poeticamente cinco vozes dissonantes e complementares, vozes negras arquetípicas. Voz- África mãe e terra/memória, Voz-mulher negra/ventre livre, Voz-homem negro-traidor pai João, Voz- homem negro-heroi Zumbi=rebeldia, Voz-Instrumentos/contrabaixo/tambores e canto.

O texto que é então uma polifonia começou a ser destrinchado ainda na porta, durante a entrada do público. “O Silêncio depois”, nos quatro pontos do espaço cênico quatro vozes coesas, uma bem forte, feminina, grave, majestosa e máscula. Quem suportava essa voz? Sua dona era uma mulher, quase recém menina,  com cara de lua nova, envelhecida pela personagem A Antiga, ou África mãe.

Tratar a História não contada como corpos insepultos, nos remete a Walter Benjamim na tradição ocidental e em cosmovisões bantus. Os defuntos sempre perturbam ou ajudam os vivos.  O tempo inteiro são os mortos que destilam as varias faces do racismo anti-negro. A aguardente na nossa boca, prenuncio da overdose etílica, quando pode vira vômito na cara da sociedade. Quem tá disposto a isso? Sentar e ouvir tim-tim por tim-tim o “Negro Drama”? Mas o texto não é sobre a dor da inconsciência negra, mas do papel exercido pelos que se foram dessa concreta existência, “cemitério dos vivos”, para a kalunga eterna, a água dos mortos. Veja: http://www.pucsp.br/ultimoandar/download/BrigidaMalandrino.pdf

Não há linearidade no discurso, apenas previsibilidade no desfecho, embora sem fato histórico especifico. O pano de fundo é a linha de trem, que para ser instalada, precisa desalojar as precárias moradias e seus habitantes. Feliz alusão a tantos e infelizes desalojamentos de negros e pobres para  “passagem do progresso”, fato constante no Brasil desde o século XIX.

O desterro símbolo África, desterro sina Brasil contemporâneo, nós somos os estranhos de porta adentro, uma recorrência do processo de desenvolvimento econômico, exploração imobiliária e expansão urbana combinado com racismo ambiental (brancos no centro), fenômeno estudado por várias perspectivas. Raquel Rolnik, entre outros, foi pioneira no mapeamento e desvelamento desses processos. http://raquelrolnik.wordpress.com/1989/09/16/territorios-negros-nas-cidades-brasileiras-2/

A voz África mãe, corporificada na Atriz Thais Dias traz uma gestualidade que insinua afro dança, mas ela apenas indica comedidamente, é mimese e não coreografia. Esteticamente seria por demais óbvio, lugar comum nos grupos iniciantes, essa foi uma ótima solução. Cumpre duplo papel de narradora e personagem chave, sua construção é encantadora e compensa com sua performance, a luz e figurinos ultra-econômicos ou quase precários.

As vozes homens negros traidor e herói (têm pauta relativamente curta, cumprem o exercício no jogo da bipolaridade, símbolo de consciência X alienação, recriando os arquétipos mais rasos do enredo. Conquanto os atores sejam excelentes e façam uma exploração bem limpa do texto, projetam, performam, transpiram, se desdobram, mas comparativamente é pouco denso, têm pouco espaço de manobra, porque o texto não permite.

Está também lá o arquétipo mulher negra, corpo-samba, libido-sexualidade. Ao mesmo tempo é ela a portadora da transgressão social do contato interétnico. Mas há tembém a interdição e a queda inexorável. Aqui a bipolaridade negra-branco se mantém também nos níveis mais elementares, nos enredos e desfechos construídos durante a década de 1970, que eu também não sei se superamos na vida real, muito menos na dramaturgia. N´so avançamos bastante na compreensão da diversiadde negra, mas ianda não estender isso a complexidade dos bancos. Que brancos são esses no Brasil? Perguntou um ilustre professor negro de Minas Gerais, em uma banca de mestrado na UERJ. A sua questão dizia respeito a necessidade de colocar no nosso repertório de perocuapações os estudos sobre as branquitudes. As noções branca de pertencimento. Fora Lia Vianer, chegaremos lá?

Aysha Nascimento tem corporalidade delicadamente magra e quase fashion, a musculatura é torneada e de pouco volume. Não é alta, mas esguia e tem um timbre contralto de acento blues. Seu figurino é uma minissaia dourada de lantejoula e a blusa preta brilhante. Bem cavada nas costas, a roupa deixa à mostra sua musculatura, que vai dançando suave sob o decote. O batom leve no primeiro momento é depois borrado para destacar a arcada dentária de propaganda de creme dental. Seus ressaltados no quase choro é raivoso, mas impotente, algo muito diferente da maioria das mulheres negras na vida real.

Essa voz feminina traz carga de uma persona de ficção e de algum realismo, pode ser ouvida e também lida  como síntese de certo romantismo feminino, que não ficou nas foto-novelas, nem nas revistas distribuídas massivamente em bancas de jornal (Grande Hotel), para um público cuja leitura prescindia do texto. Essa cultura de massa também construía idealização masculina, obviamente o macho-branco, escolarizado, possuidor de bens e possível facilitador de ascensão. É esse que a Rainha encontra e desmascara, mas invés de revê-lo, se revela. Ela a ingênua rainha do carnaval. Ainda simula a tipologia de Lima Barreto, Clara dos Anjos. É ela retinta e denegrida, mas decaída na quarta feira de cinzas, chorosa e enganada.

Há ressonância de um tipo especifico de discurso feminista-negro, cujo conteúdo pode revelar várias camadas de mudanças e permanências sociais e culturais na vida brasileira nas últimas décadas. Porém não é uma pesquisa de personagens históricos reais, não é sociologia do “problema Negro”, sim criação de personagem-pretexto para uma narrativa cativante e bacana.

Duas vozes-homens e duas vozes-mulheres, umas vozes baixo-canto-batuques e uma cidade partida pela linha de trem, com casas à margem. Urbanidade é proximidade, fricção, tensão e solidão. A plataforma de lançamento dos contrastes entre os vários grupos de habitantes,  cidade é uma tendência inexorável desde Tombuctu e Genova do século XIV. Talvez desde lá, haja o fato da luta pela reversão da dominação macha e o avanço do fantasma da solidão avassaladora que cerca as mulheres em geral. Os machos são de aventura e guerra, nos bastamos a nós mesmo, porque ainda somos as medidas do mundo. Mesmo um macho negro, que fica na fila social-racial atrás das mulheres brancas, ainda rosna viril. Cuidado comigo eu tenho uma arma engatilhada.

Hoje há circulando entre nós, na cidade e no país, felizmente, uma infinidade de eventos, poemas, livros, canções e filmes produzidos nesses circuitos  que redefinem as alteridades e os possíveis afetos entre os seres humanos negros bem especificamente.  Muitos atravessam a “linha da cor” e arremessam brilhos regeneradores nos pontos mais salientes de nossas feridas e também tocam nossos irmãos e irmãs não negros, criam e estimulam novas formas de expressão e sociabilidade, convivência e civilidade.

Também há eventos e textos que pairam nas “regiões mais abissais do sentimento” de revanche, algumas vezes ainda veiculam discursos predominantes de hiper-masculinidade e de homofobia. Uns outros, embora oriundos de gente da pele negra, são bastante convencionais nos enredos e em alguns casos carregados de tinta individualista-consumista e disseminadores de misoginia. Vamos também silenciar sobre isso? Tem algum canto teatral para esse tema?

Alguém dentre nós se mostra contente, esperançoso e entusiasmado quando os marqueteiros usam imagens de famílias convencionais (homem e mulher com duas crianças) em propaganda de margarinas, supermercado, controle de natalidade, bolsa família, empréstimo consignado. Só, que invés de brancos, colocam pessoas negras. Alguém pensa secretamente, agora podemos ser vistos. Algum amigo solidário, mas um pouco alienado pergunta: mas as coisas não estão melhorando?

Até quando vamos, negros e brancos, nos esconder da discussão  sobre os relacionamentos inter-étnicos?  Até quando devemos aceitar que o debate fique nos limites dos parâmetros da Miscigenação Apaziguadora, ou do perigo da Diluição Racial dos Negros? Fora desse absolutismo étnico quase facista, como deixar de reconhecer e valorizar a presença dos euro-descendentes nas fileiras anti-racistas?

Pode ser que a montagem cause algum choque aos brancos mais desavisados ou negros complacentes, porque o release apresentado pelo SESI sequer faz menção a questão racial.  Verdade seja dita: esses (as) jovens negros (as) criativos (as), corajosos (as) e organizados (as), constroem novos patamares para identificação coletiva dos descendentes de africanos no Brasil. Há nisso algo que os conecta as experiências do teatro Experimental vai Guerreiro Ramos e Abdias  do Negro e do Teatro Popular proposto pelo Solano. Digo sao fios delicados tecidos  no sentido de uma auto-educação política, social e cultural que viabilize nossa participação não subalterna nesta sociedade.

Eles e Elas do Coletivo Negro vão além de uma pedagogia sócio-cultural proposta nos anos 1940, posicionam a pesquisa estética como norte e mantêm preocupações políticas, mas ao que me pareceu, não abrem mão da reelaboaração, busca da beleza, da delicadeza e da solidariedade. Isso aparece no texto, na forma e no exemplo.

Vamos ao teatro? O texto é lindo, nos instiga, desafia e estimula. Somos teatro e musica, letra e dança, somos vida, somos o quisermos, somos negros sim. Descendemos do Deus Áfrico, Nzambi nos fez.

Fonte: http://mosaiconegrobras.blogspot.com.br

 

por Salloma Sallomão