A qualidade e o lugar da presença por Valmir Santos – crítico teatral.
Um grupo que saúda na mesma noite Abdias do Nascimento e Timochenco Wehbi já diz a que veio sobre os assentamentos históricos e sociais da arte que abraça. Nascimento foi cofundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), projeto artístico pioneiro realizado no Rio de Janeiro entre 1944 e 1961, com reflexos em muitos pontos do país. Já a dramaturgia do prudentino Wehbi, sociólogo cuja densidade das peças não ofusca uma poética libertária via imaginário, caso de Palhaços. Pois o Coletivo Negro, de Mauá, na Grande São Paulo, evoca a causa antirracista como coração do texto enquanto agrega ao corpo em cena/da cena procedimentos de uma intervenção plena em plasticidades e sonoridades.
Na espiral de tempo de “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois…”, o presente, o passado e o futuro são embaralhados em narrativa conduzida por uma voz ancestral africana, pela atriz Thais Dias, também ela uma “Antiga”, como se diz na peça em relação de respeito aos antepassados. A criação vigorosa alinha manifestações do canto, da palavra e da dança, aos quais valeria acrescentar o olhar magnetizante. A dramaturgia concebida coletivamente, sob texto final de Jé Oliveira, costura os percursos biográficos de uma mulher e dois homens. Esses três cidadãos foram extraídos de seu território de origem, em suma, por fatores como a truculência de agentes públicos, a ilusão amorosa e a falácia economicista do progresso – leia-se especulação do mercado imobiliário.
Alternam-se os planos ficcionais e documentais. Um filho rememora a consciência crítica do pai, uma das lideranças resistentes da comunidade (pelo ator Jefferson Matias). Cansada da relação corpo-objeto, uma mulher se enamora de um estrangeiro e vai experimentar ser ela mesma, na pele e na alma, em outro país (por Aysha Nascimento). Um terceiro rapaz conta como a liberdade de soltar pipas na infância foi ceifada pela ação violenta de uma desocupação (por Raphael Garcia).
Suas histórias são literalmente atravessadas, vez ou outra, pelos solavancos do trem que desliza pelos dormentes e faz menção a uma área desapropriada que virou estrada de ferro e provocou a remoção de muitas famílias.
Os atores desses fragmentos biográficos deixam transparecer o fio do tempo por meio da gestualidade, dos adereços, objetos e figurinos. Os espectadores estão postados rente à cena, numa arena adepta da tradição oral africana de narrar e transmitir saberes ao pé do ouvido. Na apresentação no Sesc Thermas, esse vínculo intimista foi ampliado para arquibancadas complementares e o elenco deu conta de manter a ligação.
O espaço cenográfico envolve bancos de madeira e três nichos/oratórios dos respectivos personagens, demarcados por luzes azul, vermelha e branca (por Julio Dojcsar>casadalapa e Wagner Antônio). A música ao vivo flui como coadjuvante e protagonista nas pulsações rítmicas e ritualísticas (cordas e percussão por Fernanda Camilo e Kauê Palazolli).
São poucos, mas sobressalentes, os momentos em que as falas pendem para o discurso de vitimização, desequilibrando uma obra ademais bem sustentada em seu conjunto em termos de incisão e delicadeza. A fala-manifesto indignada soa mensagem encerrada em si. Não interpõe, constata. Diferente dos demais aspectos formais do espetáculo, a começar pela qualidade da presença dos atores.
Natural a veemência do discurso nessa que é a primeira montagem do Coletivo Negro (daí o Movimento Número 1 do título). O trabalho dialoga com outros pares da produção brasileira que possivelmente também transbordaram no tom de manifesto na largada e, aos poucos, foram alargando os horizontes de elaboração, resultando artisticamente mais categóricos. Citamos o núcleo baiano Bando do Teatro Olodum, com o recente Bença. E os paulistas Clariô, com Hospital da Gente; Os Crespos, com Ensaio sobre Carolina; Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com Orfeu Mestiço – Uma Hip-Hópera Brasileira; entre outros.
O Coletivo Negro já usufrui clareza quanto ao lugar da arte do qual fala, toca e deseja ser ouvido. E traz em seu ventre a percepção essencial de que a indignação pode ser comunicada por meio de outros silêncios, sonoridades e respiros, calando fundo e resistindo à pulverização das utopias.