Conflitos da mulher negra empoderada são força de “Ida” por Miguel Arcanjo

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Neste começo de século 21, o Brasil viveu mudanças sociais perceptíveis, sobretudo em uma parcela social que por meio do estudo conseguiu ascender socialmente, ocupando novos lugares, como é o caso da população negra. O grupo paullistano Coletivo Negro se aproxima cada vez mais desta comunidade, que busca refletir sobre si mesma em suas peças. Depois de abordar o homem negro em “Farinha com Açúcar”, chega a vez de a mulher negra entrar em foco no espetáculo “Ida”, sobre a mulher negra empoderada e seus conflitos. O espetáculo é um retrato poético e potente deste estrato social contemporâneo. Em cena, a intensa atriz paulista Aysha Nascimento e a bailarina mineira Verônica Santos, comum corpo longilíneo de movimentação precisa, dividem a personagem Ida. Trata-se de uma jovem arquiteta negra, primeira a receber um diploma de curso superior na família e que se vê diante do conflito de desbravar novos lugares sem renegar sua ancestralidade diante de uma sociedade excludente, machista e racista. O conflito maior da personagem se dá quando, em seu primeiro emprego como arquiteta, lhe é pedido projetar um apartamento que contenha aqueles minúsculos quartos de empregada, que lhe remete à senzala, ao “Quarto de Despejo” tão bem definido pela escritora Carolina Maria de Jesus.
O diretor Flávio Rodrigues, com assistência de Maitê Freitas, tem a sensibilidade necessária para construir o espetáculo como um emaranhado psicológico da personagem, no qual o público mergulha para perceber o conflito presente entre o consciente e o inconsciente de Ida, entre o sim e o não tão difíceis de se alcançar. O texto marca a estreia como dramaturga da cineasta Renata Martins, da série “Empoderadas”. Ela consegue dar poesia ao conflito da mulher negra desde muito cedo enfrentando agruras e estereótipos históricos baseados em preconceito. Uma cena que dá um nó na garganta do espectador é quando a jovem arquiteta negra mostra um excelente projeto a seu chefe branco e ouve deste a resposta se foi ela mesma quem o executou.
Um ponto forte do espetáculo é a música executada ao vivo pelas virtuosas musicistas Fefê Camilo, na percussão, e Ana Goes, na guitarra e no saxofone, criando um clima de jazz intimista no desenrolar da obra, sob direção musical de Dani Nega. A artista gráfica Nina Vieira assina a cenografia em madeira rústica e ao mesmo tempo sofisticada, enquanto Débora Marçal veste as personagens em um figurino elegante e que denota as mudanças no caminho da personagem. A fotógrafa Dani Meirelles cria uma iluminação que conversa o tempo todo com a dramaturgia, poetizando seus momentos mais dramáticos.
“Ida” é um retrato destes tempos nos quais a mulher negra passa a ocupar novos lugares na sociedade, resultado de um esforço contínuo e de um enfrentamento diário com um mundo machista, racista e opressor, mas diante do qual ela não desanima, guerreira que é, que sempre foi. Afinal, como diz o texto da peça, esta é uma ida sem volta. Ainda bem.

 

por Miguel Arcanjo